Pescando sons subterrâneos

marcoantoniofariasscarassatti_38751Que cartografia é possível abaixo do nível da pavimentação urbana? Que relação haveria entre bueiros, rios, situacionismo, filosofia islâmica e “Plásticas Sonoras”?

A primeira conversa de fôlego do ano para o blog foi com Marco Scarassatti, autor de livro sobre Walter Smetak e professor da UFMG. Ele acaba de lançar, por selo independente, um trabalho que deriva de andanças auscultadoras pelas ruas de Belo Horizonte. O papo começa por aí.

 

Como soube dos rios canalizados da cidade? Como, por que eles chamaram sua atenção?

Descobri numa deriva pela cidade. Eu havia comprado uma passagem de ônibus pra Campinas num sábado a tarde, porém o ônibus só sairia tarde da noite. Resolvi sair, me deixar levar pelos sons da cidade. Numa das ruas em que virei, na Rio Grande do Norte, escutei um som vindo de baixo da terra. Me aproximei de uma grade que estava no meio da rua e me surpreendi com o que vi. Depois disso comecei a prestar atenção e percebi que a cidade toda possuía grades do mesmo tipo espalhadas pelas ruas.

Que rios ouvimos nas duas faixas de “Rios Enclausurados”, trabalho lançado agora pela Seminal Records?

Rios Enclausurados é uma edição de sons de vários córregos de Belo Horizonte, ali temos sons da própria Rio Grande do Norte, da Avenida dos Andradas, da rua Sagarana, da Prudente de Moraes entre outros.

Aparentemente, a partir da gravação pode-se ouvir o curso das águas a partir da galeria, abaixo do passeio, e não da calçada. Como se posicionou para a tarefa?

Quando comecei a gravar eu posicionava o gravador nos vãos das grades, normalmente fazia isso sozinho e, em algumas ruas era perigoso. Depois, em 2012, comecei a gravar com o Fernando Ancil, um artista visual amigo, que fez comigo a instalação sonora na avenida Afonso Pena. Aí começamos a descer o gravador com um fio de nylon amarrado nele. Parecia que estávamos pescando, pescando o som. Mas muitas vezes gravei em planos distintos, ora mais próximos d’água, ora mais próximo do asfalto.

Que equipamento utilizou – e em que medida considera essa questão importante?

Gravei com diferentes gravadores, comecei com o Zoom, tanto H4n, quanto o H2n. Depois usei também o Roland R-26. A escolha do gravador é bem importante, no caso específico desse trabalho. O gravador digital, nesse padrão de tamanho, facilita a entrada pelos vãos da grade.

“A cidade não escuta o rio. Mas dali de dentro do tubo, escuta-se a cidade.”

Pode falar um pouco sobre esses entornos no momento das gravações?

Os momentos, os entornos, os contextos de gravação foram sempre variáveis. O interessante é pensar que a cidade não escuta o rio. A frequência da sua sonoridade é mascarada pelos sons urbanos. O som do rio é quase um ruído branco, confinado dentro de um tubo de concreto. Mas dali de dentro do tubo, escuta-se a cidade. E a captação desses sons externos ao tubo aparenta ser de uma escuta com certa difração, como o raio de luz que incide sobre a água.

Pergunto porque, enquanto estava escutando, comecei a imaginar mais esse entorno. Na primeira faixa, além do som das águas, em algum momento há um latido de cachorro, algumas batidas mais compassadas de alguma atividade humana próxima. Na segunda, há falas e outros sons à distância que podiam ser aviões, carros ou mesmo trovões. Mas também acontece de o som do rio ser tão forte e contínuo que, por vezes, a mim parecia que ouvia estática em uma estação de rádio, ou que o próprio som do rio agora podia, ele mesmo, ser de um avião, ou de uma grande tempestade.

É interessante essa percepção que você descreve. Delineia uma cena de um certo abstracionismo sonoro, talvez causado pela intensidade e pela complexidade dessa sonoridade entubada. E esse tubo é também um ressonador dos sons do asfalto, o que cria variações quase imperceptíveis desse contínuo. De vez em quando uma sonoridade irrompe esse ciclo e se delineia como algo figurativo, algo identificável, um latido, uma buzina, uma fala. Entretanto isso se desfaz. Se pensarmos o rio como um ser vivente, esses momentos eu imagino que sejam aparições de uma realidade possível, como se ele, o rio, fosse o prisioneiro da caverna do Platão. Imagine uma caverna, com uma pequena entrada de som… deve ser angustiante ser rio, nessas condições.

“Como se ele, o rio, fosse o prisioneiro da caverna do Platão. Imagine uma caverna, com uma pequena entrada de som…”

Marco Scarassatti gravando rios enclausurados de BH
Marco Scarassatti pescando sons de rios pelas ruas de BH

 

O que espera, em geral, de seus ouvintes com esse trabalho?

Eu já pensei em dar o nome Eu grito para que me escute, para esse trabalho. De alguma forma, quero reproduzir a sensação do que foi pra mim a descoberta de uma masmorra dentro da cidade, a descoberta de um prisão, uma clausura em que um prisioneiro está ali esquecido, pretensamente invisível e silenciado por um projeto urbanístico. Ele sequer pode ser visitado. Ele está privado da convivência com a cidade. Mas quando chega-se perto das grades, percebe-se logo sua potência e um encantamento sublime advindo da ideia de que a qualquer ele pode com sua força quebrar tudo e voltar a decidir o seu curso.

Você conhece o projeto de mapeamento colaborativo (não sonoro) Rios de São Paulo? Também aborda a invisibilidade dos rios urbanos.

Não conhecia. Aqui em Belo Horizonte tem a artista plástica Isabela Prado. Para a exposição “Entre rios e ruas”, ela gravou os rios também. Conheci esse importante projeto apenas recentemente, mas ele já acontece há um tempo e também se detém a gravar e difundir os sons desses rios canalizados.

Você também convida pessoas para derivas sonoras previamente organizadas. Como se dão e em que você fundamenta essas atividades?

Em princípio a ideia da deriva esteve ligada a minha aproximação com a cidade de Belo Horizonte, foi uma maneira de conhecê-la, pelos sons que me atraiam. Sem gravar nada, apenas me deixei passar pela experiência. Evidente que a inspiração maior veio com a teoria da Deriva da Internacional Situacionista, que o Guy Debord publicou. Juntei a isso as práticas de soundwalking feitos pela Hildegard Westercamp, com a diferença de que não havia trajetos previamente pensados. Posteriormente coloquei em prática com um grupo de bolsistas de um projeto de formação docente, que eu coordeno, o PIBID.

Escolhi um lugar que eu já conhecia pela diversidade de sons, a Praça da Estação. Combinamos um encontro lá. Primeiramente sugeri que cada um do grupo se colocasse a ouvir os sons da praça e se deixar levar por aquele que chamasse mais a sua atenção e, que a partir daí, se lançasse pelo tempo que quisesse à experiência de ir investigando a cidade pelos sons atrativos. Nesse primeiro momento não gravamos, para não ficarmos reféns da simulação de escuta que o microfone faz, tampouco presos a ideia de que tínhamos que produzir algo. Eu queria que eles vivessem essa experiência.

Guy Debord e situacionismo: inspiração maior
Guy Debord e situacionismo: inspiração maior

Assim que todos voltaram, os reuni para discutir que trajetos foram aqueles que cada qual fez e propus que refizéssemos cada trajeto, agora de posse do gravado digital, como se a experiência da escuta tivesse deixado um lastro de sonoridades pelas quais iríamos percorrer. Refizemos cada trajeto, gravamos e depois com todo esse material fizemos um postal sonoro da Praça da Estação. Não era apenas um retrato estático desses sons, era a junção dos movimentos e escutas desses corpos envolvidos, tornou-se um postal complexo, com várias escutas, vários trajetos na mesma praça.

Nessa mesma época eu vinha desenvolvendo uma ideia antiga que eu tinha que era a criação de dispositivos de escuta. Eles são objetos relacionais que são montados, na sua maioria, em capacetes de segurança. Cada dispositivo tem uma espécie de filtragem distinta do outro. São canos de PVC, cifões, chifres, abafadores, cones. Esses dispositivos foram desenvolvidos para serem utilizados nas derivas sonoras e também em concertos de música. Como eles alteram a escuta, não só pelo filtro, mas também porque agregam à nossa escuta um extensor que está encostado em nossa orelha e por isso promove também uma escuta pelo meio sólido, por essas alterações, eu imagino que todo nosso aparelho perceptivo se engaja na adaptação a esse dispositivo, nos tornando um grande ouvido. Dessa forma, nas derivas sonoras, o capacete faz com que estejamos inteiramente mobilizados para a escuta.

Dispositivos de escuta de Marco Scarassatti
Dispositivos de escuta para derivas sonoras

“Rios Enclausurados” surge no âmbito de um projeto maior, de cartografia sonora de BH. Que outros sons da cidade foram selecionados, e como acontece essa escolha?

A ideia da cartografia sonora da cidade pressupõe pensarmos a escuta como uma ferramenta de observação e pesquisa, podemos pensar e apreender o mundo pelos sons. Um espaço se constitui por elementos que se relacionam, se intervalam, elementos com os quais interagimos. Se entendemos os sons como alguns desses elementos, podemos pensar que um espaço, ou uma apreensão do que é um espaço pode se dar pelos sons que o constitui. Cartografar é mapear esses sons, esses trajetos, desvios, atalhos, isto é, é criação de um outro espaço, imitativo, reduzido, simulado em que esses sons possam ser representados. Na época imaginava fazer uma cartografia sonora envolvendo desde os sons dos subterrâneos de uma cidade até os sons aéreos. Considero que os elementos sonoros que constituem esses espaços, são naturais e culturais. Portanto, ligados à natureza geográfica e ambiental, ao trabalho, às tecnologias, à fala, língua e linguagem, às músicas escutadas e produzidas.

Você é autor do livro “Walter Smetak: O Alquimista dos Sons“, que integra a Coleção Signos/Música (Ed. Perspectiva). Podemos entender que sua inclinação a construir os capacetes como dispositivos de escuta tem alguma coisa a ver com seu interesse pelo trabalho do suíço-brasileiro?

Sim, sem dúvida! Em um dos manuscritos, Smetak fala do que seriam as Plásticas Sonoras Silenciosas. Formas tridimensionais diante das quais abstrairíamos uma quarta dimensão que seria o som. Para além dessa ideia smetakiana, adiciono a lembrança de um livro do Henry Corbin em que ele se referia a um profeta sufi, que diz ter abdicado da música quando entendeu que ela residia no silêncio. No caso dos capacetes como dispositivos, a música está na escuta, criam uma superfície topográfica textural que delineiam os sons do ambiente nas escutas de cada veste das orelhas.

Clique na imagem para ler "Walter Smetak: a máquina do silêncio"
Clique na imagem para ler “Walter Smetak: a máquina do silêncio”

Como estudante, sua trajetória acadêmica, da graduação à pós, se deu na Unicamp. Mas você foi da Música-Composição à Educação, passando por Multimeios. O que esse caminho diz sobre as perguntas que desenvolveu na universidade?

Quando terminei o curso de composição musical, eu estava interessado em transpor os limites das áreas específicas, me interessava na música o que estava para além dela, me interessava nas artes visuais o que estava para além dela, me interessava pelos entres. Por isso ingressei no mestrado em Multimeios, pois queria investigar a obra do Smetak e, para mim, ele era um visionário de uma multimídia desplugada. O doutorado na Educação se deu porque me interessava o trabalho do grupo Olho, que na época era coordenado pelo Milton José de Almeida. Lá se pesquisava e estudava alquimia, sufismo e outras correntes do pensamento que foram suplantadas pelas correntes que se tornaram as hegemônicas e que serviram como estruturadoras desse mundo construído, desde então. A isso aliava-se uma perspectiva menos pedagogizante da relação entre arte e educação. Penso que todo artista é, de alguma forma, um educador e isso nada tem a ver com a pedagogização da arte para que ela caiba na escola.

“O próprio nome Música deveria ser pensado como Artes do Som, Artes Sonoras.”

Agora você é professor do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG. Que contribuição as questões em torno do sonoro podem oferecer para se enfrentar os desafios educacionais?

Essa é uma boa pergunta mas não é tão simples de responder, vou tentar colocando algumas questões com as quais me deparo a cada momento em que estou em aula. Em primeiro lugar, acho que a educação musical, como campo, se distanciou da própria música para se efetuar e se legitimar como uma área que produz conhecimentos próprios. Há algo endógeno nesse processo de consolidação como campo. Emula-se um conhecimento específico, intrínseco à área. A educação musical discute a educação musical e, muitas vezes, a música passa ao largo disso, pelo menos no que se refere às formas de se fazer música atuais, os modos de se organizar em torno do sonoro. Em muitos casos há ainda um reducionismo ao se pensar a educação musical como uma série de atividades infalíveis para o processo de musicalização, seja numa aula, em um curso, ou um percurso. O paradigma ainda é o de que uma certa música normatiza o que é a musicalidade, e que a música atua e melhora o indivíduo para a apreensão de outras disciplinas, ou coisa que valha.

Agora, se pensarmos que fazer música é parte de um processo sociocultural ligado aos sons, sua organização e interação, e ligado também ao momento histórico, geográfico, em que esse processo se dá, e em meio a outros tantos vetores, como características do grupo, contexto, sua forma de interação, e fruição simbólica, condições materiais e repertórios, penso que o próprio nome Música deveria ser pensado como Artes do Som, Artes Sonoras. Isso porque reflete de uma maneira mais abrangente, mais inclusiva, tudo aquilo o que se relaciona com a produção sonora humana. Dito isso, penso que a escuta deve ser valorizada como uma maneira de se estar, inquirir e investigar o mundo, e as relações que se estabelecem e se desdobram a partir dela, sejam produções materiais, simbólicas, efêmeras, interacionais, devem estar no centro do processo educacional.